Autora: Priscilla Rubia
Miguel
odiava o silêncio.
Ele estava em todos os lugares, estava
nas vozes, no grito das crianças que moravam com ele. Por mais que falassem, se
comunicassem, Miguel não via nada além do silêncio.
Tudo o que escutava durante todo o dia
no orfanato era o nada, o vazio. E como ele odiava.
Queria ir embora. Queria deixar o
silêncio para trás. E o fez. Deixou o orfanato em uma noite fria e, claro,
silenciosa. Tinha quase certeza de que não faria falta. Talvez uma coordenadora
ou outra sentisse sua falta, mas logo seria esquecido. Caminhou sozinho pelas
ruas procurando ouvir.
Foi encontrado, para sua surpresa, mas
não por uma coordenadora. Era um homem. Tinha uma aparência... como diziam? Uma
aparência “boa pinta”. Usava uma jaqueta preta de couro cobrindo uma blusa
vermelha tão gasta que Miguel logo soube que era sua favorita. Quando sorria, o
amarelo reluzia em um dos dentes. Porém a figura boa pinta sumiu da mente de
Miguel assim que o homem abriu a boca. Era silêncio. Cada sílaba o carregava.
Sabia que se chamava Jonas, mas
gostavam que o chamassem de Jones, como nos filmes americanos. Sabia, tinha
entendido, que era um homem de negócios, porém nada disso era interessante para
Miguel. Ele não carregava o que lhe interessava. Porém Jones se mostrou
interessado por Miguel. Disse-lhe que sabia que um garoto como ele não andava
sozinho por aí. Estava limpo e bem vestido. Certamente estava perdido ou havia
fugido. Perguntou a Miguel qual das duas opções. Deu de ombros. “Fugiu então.” disse
pegando o menino pelo braço e o arrastando. Miguel relutou, mas o homem lhe
disse que se ele não queria voltar de onde viera, deveria fazer o que ele
mandava.
Miguel não sabia como ele poderia saber
de onde veio, mas acreditou. Aprendera no orfanato que os adultos poderiam
quebrar promessas, diferente da maioria das crianças. As crianças quebravam sim
promessas, mas aquelas feitas aos adultos. Porém quando faziam uma promessa
entre si era sagrado. Quebrar uma promessa de mindinho era um pecado, um
ultraje. Os adultos as quebravam, sendo de mindinho ou não, entre si ou não,
exceto quando tinham aquele olhar. O olhar determinado que o homem lhe dirigia
no momento. Carregando aquele olhar, Miguel sabia que o homem cumpriria o que
tinha dito. Os adultos poderiam fazer qualquer coisa enquanto carregassem
aquele olhar, pena que os usavam com tantas coisas bobas.
Miguel então ficou, conforme mandado.
Começou a trabalhar para o homem. Era um trabalho fácil, porém perigoso.
Consistia em ficar no alto das casas e avisar quando avistasse algum policial.
O aviso era dado por algo gritado, que passava despercebido para alguns, mas
era entendido por outros, fazendo disso algo muito importante. O aviso poderia
ser dado até pelo modo que manejava a pipa vermelha no céu.
Outro trabalho era correr e entregar
pequenos saquinhos. Miguel não sabia o que eles carregavam, pareciam folhas, ou
algo do tipo. Um dia viu que um deles estava entreaberto e pegou um pouco do pó
amarronzado e provou. Tinha um gosto ruim. Cheirou e espirrou. Não entendia
porque as pessoas gostavam tanto daquela coisa. Jones sempre lhe dizia que se
ele fosse pego “peloszômi”, estava por conta própria. Que estava perdido.
Miguel então tomava cuidado.
Apesar de a nova vida estar cheia de
ação e ser muito movimentada, Miguel não escutava ou sentia nada além do
silêncio. Era um lugar vazio como qualquer outro.
Então um dia, que tinha tudo para ser
como outro qualquer, Miguel conheceu Ana. Ela apareceu como as outras crianças,
“recolhidas” por Jones. A maioria dessas crianças eram meninos de rua que
roubavam para sobreviver. Ana era diferente. Não porque era perdida ou porque
carregava os mesmos olhos de Miguel, de um verde estonteante. Ela era diferente
porque ele podia ouvi-la. A voz dela era como música, cada sílaba era como uma
nota musical. Adorava olhar em seu rosto enquanto falava, ver seus lábios
formando cada palavra.
Tornaram-se grandes amigos.
Descobriu que Ana era da mesma idade
que ele e havia se perdido por soltar a mão da mãe, o que pra ela pareceu um
segundo. Miguel sabia que tinha muito mais de um segundo na contagem de Ana,
era uma menina muito distraída. Às vezes a surpreendia parada, com os olhos
vidrados olhando para o nada.
Ana queria ir embora, não
gostava de Jones. Ora, ninguém gostava de Jones, mas Miguel sabia o quão
difícil seria deixá-lo para trás. Não seria fácil ir embora, mas Ana queria. E
que assim seja.
Miguel amava Ana.
Não era aquele amor que via nos
filmes. Não sentia vontade de, por exemplo, beijá-la na boca. Quem em sã
consciência trocaria saliva com outra pessoa? Não, não era isso. Porém tinha
uma forte vontade de protegê-la, uma real necessidade de estar ao lado dela.
A oportunidade para fugir
surgiu algumas semanas depois. Jones estava morto. Os policiais o mataram. O
lugar virou um pandemônio e quando o tiroteio começou, Miguel pegou Ana pela
mão e correu com ela. Correu com a mente fixa somente na saída, na idéia de
escapar. Demorou a perceber que ela gritava. A olhou e viu que chorava e
apontava para suas costas. Percebeu que não poderia correr mais. De repente
estava no chão. Quando caiu, viu o líquido vermelho e soube que era sangue, seu
sangue. Ana apareceu em seu campo de visão, os olhos verdes carregando tristeza
e cansaço. Chorava muito. Miguel tentou sorrir e lhe dizer que estava tudo bem,
porém não conseguiu.
Mergulhou na escuridão.
Acordou em tal claridade que
demorou a abrir os olhos. Pensou que estivesse no céu, mas sentiu-se acomodado
em uma cama e o ambiente tinha um cheiro esquisito, parecia cheiro de remédio,
cheiro de hospital. E era mesmo. Tentou levantar, mas as pernas não obedeceram.
Precisava saber de Ana. A encontrou em um ponto afastado do quarto, dormindo em
uma cadeira. Sorriu sentindo-se aliviado. A chamou. Ela acordou e sorriu radiante.
Praticamente saltitou até o seu lado. Ela chamou alguém e uma mulher entrou no
quarto. Era alta, cabelos loiros, olhos como os de Ana, muito bonita. Ana a
chamou de mãe. A mulher olhou para Miguel, um tanto espantada:
— Ele tem seus olhos Ana.
A menina respondeu que sim. E
Miguel sorriu feliz por Ana ter encontrado a mãe e, o melhor: podia ouvi-la
também. A mulher continuou a olhá-lo parecendo chocada e saiu à procura de um
médico.
Miguel tomou injeção, do que
não gostou, porém não ficou chateado. Dormiu no hospital com Ana na cadeira ao
lado.
Foi acordado no dia seguinte
por Ana que sorria encantada. Tinha notícias para dar. O exame estava pronto.
Estava comprovado.
Miguel era irmão de Ana. Irmão
gêmeo.
Teve vontade de gritar, rir e
chorar tudo ao mesmo tempo. Pelo jeito, tinha sido roubado no hospital quando
ainda era bebê. De alguma forma fora parar no orfanato e por obra do destino
encontrara Ana ou vice-versa.
O médico aproximou-se com um
peso no olhar. Não parecia ter alguma notícia boa para dar:
— Miguel, você não pode mais
andar.
— Ele é surdo – Ana interrompeu
– não pode te ouvir.
Miguel não escutou o que o
médico disse, ele também fazia parte do silêncio, mas entendeu que não poderia
mais correr, porém não se importou. Pra que correr quando encontrara tudo o que
sempre buscou? E o melhor era que podia ouvi-la. Sorriu quando Ana o abraçou
dizendo que o amava. As palavras dela, além de música, tornaram-se quentes e
coloridas.
A abraçou de volta.
Ótimo conto! Os textos da Priscilla são sempre muito bons. Parabéns para autora e também ao proprietário do blog que por sinal é de muito bom gosto (sempre com muitas novidades a respeito da literatura).
ResponderExcluirMuito bonito esse conto, Priscila! Você demonstra uma sensibilidade muito grande para retratar sentimentos sutis. Essa história emocionou mesmo, quantas pessoas que não nos escutam e estão por ai né? Muitas vezes as pessoas passam e sequer dirigem um olhar de compaixão para um semelhantes que, muitas vezes por acaso, está morando nas ruas...parabéns por mais esse conto que está demonstrando seu desenvolvimento como escritora!
ResponderExcluirObrigado pelo elogio, Thiago. A Priscilla é uma grata novidade que descobri pelo www.onerdescritor.com.br. Amanhã será publicado um novo trabalho dela...
ResponderExcluirBem, Priscilla, acho que você conseguiu atingir seu objetivo com o conto. Parabéns...
ResponderExcluirótimo conto!
ResponderExcluirAgradeço a todos pelos comentários e pela oportunidade que o Franz vem me proporcionando =D
ResponderExcluirNão há o que agradecer. Acredite, você conquistou seu espaço pelo simples fato de escrever bem. That´s all
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