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Predadores.

Por: Franz Lima. Publicado originalmente no Um Ano de Medo.

Eu já a acompanhava há quase duas horas. Ela, claro, nada percebeu. 
Minha maleta urrava para mim, implorando para ser aberta. Nela, alguns dos mais vorazes instrumentos cirúrgicos que um médico pode ter. Sim, pois eu fui um médico. Fui até o dia em que descobriram minhas experiências, descobriram meus apetites. Então, na calmaria que só uma conspiração é capaz de englobar, planejaram o flagrante e a minha posterior prisão. Todos falharam...
Há exatos 5 anos e 28 dias eu vagueio pela imensidão do Brasil. Já estive em São Paulo, Rio de Janeiro, Espírito Santo, Minas Gerais, Bahia e continuo subindo. Em cada Estado eu faço uma nova vítima. Todas mulheres. Todas culpadas... só não sei de quê.

O fato é que me delicio com seus sons. Não os gritos ou pedidos de piedade. Não... o que me agrada são os sons do corpo sendo aberto, do sangue esvaindo, da carne que descola como um velcro e dos ossos que parto. Todos esses sons se tornam música, literalmente. Gravo e coloco como fundo de composições minhas. Apenas um ótimo ouvinte irá detectá-los, porém eles estão lá. Aguardo o dia em que o enigma será solucionado. Aguardo...
A mulher tem passos rápidos e é bem forte. Não posso bobear ou ela fugirá e correrei o risco de ser pego. Na prisão, eu seria o prato. Imagino por quantos dias eu duraria após os estupros e espancamentos. Eles iriam me matar lentamente, como a regra determina. Dor e agonia por longos períodos para nós, as aberrações. Entretanto, não posso me distrair com devaneios. A mulher está escolhendo um lugar para comer e, talvez, essa seja minha oportunidade. 
Meus ouvidos dóem mais com os gritos da maleta. Ela quer abrir alguém, urgentemente. Eu quero atendê-la.
Páro e observo. A mulher almoça tranquilamente. Será que ela tem filhos? Marido? Ou será uma lésbica e, hoje, sua amante não irá ter a companhia de seu corpo quente? Tantas possibilidades. Tantas formas de matá-la.
Ela se levantou e nossos olhares se cruzaram rapidamente. Será que um gnu percebe o olhar do crocodilo assassino? Meu gnu se move em direção à rua tumultuada. Há muitas outras vítimas, talvez até mais fáceis, porém é ela que quero. Eu preciso ver aqueles olhos chorando, preciso abrir seus seios e remover a gordura esbranquiçada deles. Quero me banhar em seu sangue.
Fico por perto por mais algumas horas. Ninguém me nota. Apena eu a noto entrar em casa e ir descansar. Ela tem o que quero. Ela é exatamente o tipo de mulher que me atrai: solteira, bonita, grande e triste. Alguma coisa a deixou muito triste e é minha obrigação encerrar este ciclo de tristeza. E vou fazê-lo...
Algumas horas se passaram. Quase duas da madrugada, tempo tranquilo e silencioso. Ninguém nota minha entrada, pois eu sou o mais novo vizinho dela. Foram longos meses de observação sem ser notado. Discrição é o ponto-chave do sucesso para o que faço. 
Agora, já dentro da casa, ouço apenas o leve som de sua respiração. Ela dorme profundamente, sem saber que logo eu estarei dissecando seu corpo. Não quero sexo, quero algo muito mais íntimo.
Abro lentamente a porta do quarto. Ela dorme e sonha. Não sabe que os pesadelos estão mais próximos a cada segundo. Não conhece o que futuro triste que a aguarda. Ela... espere!
- Seja bem-vindo, carniceiro.
Eu me viro assustado. A voz está muito perto e tento pegar um de meus bisturis no bolso. A dor chega inesperadamente. Sinto o corpo tocar o chão e minha boca e dentes sangram. O que é...

Acordo deitado na mesma cama em que deveria estar minha caça. Não consigo mexer os braços e pernas. O gosto de sangue e ferro está inundando minha boca. O que está acontecendo?
Olho ao redor e procuro não demonstrar medo. Feras sentem esse cheiro longe e, certamente, quem me prendeu não é um qualquer. Cadê a maldita mulher?
Passos se aproximam de mim, cadenciados, meticulosos. São os passos de quem contempla o alimento. Uma gota de suor brota em minha testa e entrega o que sinto. Medo, a mais primordial das defesas. É medo o que sinto.
- Desejo que a acolhida lhe seja agradável - diz uma voz feminina. - A luz o incomoda? Acredite, esse é o menor dos seus problemas. 
A luz se apaga e apenas a luminosidade que entra pela porta permanece. A silhueta da mulher é atraente, mas há alguém mais por perto. Há sussurros. Vozes que parecem combinar algo. Tento falar, porém minha boca está lacrada com grampos e uma fita muito forte. 
A luz do corredor é apagada. Não ouço mais nada, nem sequer os gritos de minha maleta. Como deixei isso acontecer?
Na penumbra, a mulher se reaproxima. Ela está nua. Ao seu lado, uma outra mulher, aparentemente mais velha, encurvada.
A lâmpada é novamente acesa e gradativamente as faces vão se tornando nítidas. É mesmo uma mais velha que a outra. Quem serão?
- Sabe - diz a mais velha -, nós aguardamos muito tempo por isso. Até quando achou que iria ficar impune? Lembra de nós? Lembra-se? Claro que não, covarde. 
- Nós não somos suas vítimas - falou a mulher mais nova. - Nós somos os resíduos de seus trabalhos. As mulheres que matou eram nossas irmãs, filhas, mães. Lembra? - questiona-me e olha diretamente em meus olhos.
Tento falar em vão. Elas percebem e fazem o que eu mais temia. Um a um, os grampos são removidos. Não vou gritar, ainda tenho esperança, além da dor indescritível.
- Fale - ordena a mulher velha.
- P-P-Por favor... escutem. Eu não sou o responsável por isso. A maleta, ela é a força por trás de meus atos. Eu fui dominado.
Olho para elas por alguns segundos e percebo que elas acreditaram. Deus, talvez eu saia dessa. Talvez fique apenas preso. A natureza da mulher não é matar, e sim conceder vida.
- Nós não somos idiotas. Estudamos você, seus métodos e as atrocidades que fez. Percebemos que algo o movia, como um barco sem destino em um oceano. Você é uma engrenagem apenas, uma pequena peça de algo mais grandioso.
Eu forço a voz e sinto os lábios e a língua doerem muito. Contudo, o silêncio me matará. Eu preciso dizer-lhes.
- É isso! Eu sou inocente... pelo menos em parte. Ouçam o que digo: vocês precisam me entregar à polícia, eu preciso de tratamento.
- Você o terá, não tenha dúvidas - responde a mulher idosa, enquanto também tira as roupas. - O tratamento está pronto.
Elas puxam minha maleta de baixo da cama. Não há mais vozes nela. Não há mais ordens. Por que?
Os grampos são repostos em minha boca. Dói, dói muito. A mulher mais nova beija minha face e se levanta com o rosto respingado de sangue. Uma nova fita é colocada.
- Sua maleta servirá a nós, agora. Todas as vidas que você e outros como você tiraram, serão vingadas. Chegou o dia em que o rugido do leão será de medo e dor. Mas ninguém irá ouvi-lo rugir, se me entende.
Elas abrem e puxam os instrumentos. Bisturis, serras, lâminas, ganchos... todos mergulham em minha pele. É por isso que ficaram nuas, para se banharem em meu sangue, meu fluído vital. 
As lágrimas descem copiosamente. Eu me urino e defeco pela dor proporcionada. Garrotes são fixados em meus braços e pernas, o que indica que irão tentar me manter vivo. A velha arranca algo e me mostra: meu dedo. Ela sorve a carne e bebe os fluídos. 
Agora, morrerei. Contudo, de uma forma ou de outra, meu legado continuará. Culpados ou não, os que morrerem em suas mãos serão vítimas e é isso que a maleta quer. Vítimas que serão destroçadas por predadores como nós. Pelo menos até que outro surja para tomar o poder para si.






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